Com paralisia, ela ouviu do médico que seria ‘uma alface’; hoje é geógrafa formada pela UFPR.
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Publicado em 12/10/2022

Quase 30 anos depois, ela não só anda e fala, como recentemente se tornou a primeira estudante com paralisia cerebral a se formar pelo Setor Litoral da UFPR (Universidade Federal do Paraná), e a segunda de toda a universidade. No Twitter, a publicação em que a jovem compartilha a conquista, oficializada com o diploma em setembro deste ano, viralizou e já acumula 36 mil curtidas.

Recém-formada em geografia, a moradora de Matinhos (PR) também estudou gestão de recursos humanos em uma universidade privada. Ela, que tem uma paralisia considerada de nível moderado, conta que também trabalha de segunda a sexta-feira, oito horas por dia, como auxiliar administrativa de um hotel, onde atua há quase uma década.

Manu é presidente estadual do Conselho dos Direitos da Pessoa com Deficiência do PR e tutora de um curso sobre desenho universal para aprendizagem no campus Bagé da Unipampa (Universidade Federal do Pampa).

“Às vezes, eu brinco que queria ser a alface que o médico disse que eu seria, só para ficar na cama, porque quase não tenho tempo. Antes era muito raro, hoje ainda é difícil, mas eu espero que cada vez mais pessoas com deficiência ocupem seu espaço no ensino superior. É compromisso de nós todos construir uma educação mais inclusiva”, diz Emanuelle.

Paralisia não é sentença

Após o diagnóstico, Manu foi encaminhada para receber tratamento na Apae (Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais) de Matinhos, no litoral do Paraná.

Ela conta que a paralisia, em seu caso, foi provocada por um atraso no parto, que fez com que o seu cérebro ficasse horas sem oxigenação. “A bolsa da minha mãe estourou às 10h da manhã, mas o parto só foi feito pelo hospital às 23h”, diz ela.

A paralisia cerebral ocorre quando o cérebro do feto ou do bebê sofre uma lesão enquanto o órgão ainda está em desenvolvimento, o que resulta em alterações neurológicas permanentes que afetam principalmente as habilidades motoras. O quadro também pode ser acompanhado de déficit cognitivo, epilepsia e doenças musculoesqueléticas.

De acordo com Ricardo Ghelman, presidente do Núcleo de Estudos de Medicina Integrativa da Criança e do Adolescente da SPSP (Sociedade de Pediatria de São Paulo), quanto mais precoce a criança tiver acesso a um tratamento multiprofissional, melhores serão suas chances de reabilitação. Isso porque, embora a lesão cerebral seja irreversível, o tratamento clínico e cirúrgico é capaz de, entre outros pontos, diminuir a dor, aumentar a mobilidade, reduzir as dificuldades de fala e estimular a autonomia do indivíduo.

É por isso que a visão de que uma criança com paralisia cerebral será “uma alface” está errada e é fruto de desconhecimento sobre a condição, avalia Ana Beatriz Proença, médica fisiatra da AACD (Associação de Assistência à Criança Deficiente).

Proença explica que, dependendo da extensão do dano neurológico, as manifestações clínicas da condição são classificadas como leves, moderadas -caso de Manu- ou graves. Enquanto algumas crianças conseguem andar ou têm poucas dificuldades de locomoção, outras precisam utilizar cadeira de rodas, por exemplo. Mesmo nos casos mais graves, o tratamento pode ajudar a melhorar a qualidade de vida do indivíduo.

“Tem criança que o prognóstico dela é a cadeira de rodas e a gente não consegue mudar isso. Mas não quer dizer que eu não tenha nada o que fazer com ela”, exemplifica a médica. “É preciso ter um olhar atento de quem entende de reabilitação, justamente para que a gente consiga ver qual é o potencial máximo possível de tirar daquela criança.”

Na Apae de Matinhos, Manu era acompanhada por fisioterapeutas, neurologistas, ortopedistas, fonoaudiólogos, psicólogos e outros profissionais necessários para o estímulo adequado.

Ela conta que, por conta da paralisia, tem mobilidade reduzida, espasmos involuntários e dificuldades leves na fala, mas que isso não a impede de fazer atividades como ler, escrever e ir ao bar aos fins de semana com os amigos. Ao menos duas vezes ao mês, a jovem é convidada para dar palestras em escolas e universidades para falar sobre educação inclusiva.

Infância com poucos amigos e despreparo de professores

Quando Manu Aguiar completou cinco anos de idade, a psicóloga responsável por seu caso na Apae chamou sua mãe e avisou que a menina tinha condições de frequentar o ensino regular, com outras crianças.

Na época, fazia pouco tempo que havia sido aprovada no Brasil a lei que institui que é dever do Estado garantir “atendimento educacional especializado e gratuito aos educandos com necessidades especiais, preferencialmente na rede regular de ensino” (Lei nº 9.394/1996).

Matriculada em uma escola municipal, Manu conta que tudo corria bem até que, ao final do terceiro ano, uma professora decidiu reprovar a estudante, com a justificativa de que ela “não tinha condições” para ir adiante. Mais tarde, conta a geógrafa, ela descobriu que, na verdade, havia sido reprovada porque a profissional não entendia sua caligrafia.

A jovem explica que os espasmos involuntários tornam o ato de escrever com caneta e papel muito difícil. “Mas bastava a professora ter feito uma adaptação avaliativa, podia ter feito uma prova oral, por exemplo”, avalia.

O despreparo da educadora levou a criança a cursar a terceira série pela segunda vez. Manu se recorda de ter passado a maior parte do tempo ajudando a distribuir atividades ou ensaiando os colegas para apresentações de turma, uma vez que já havia aprendido todo o conteúdo programático daquele ano.

Ela descreve o período dos 11 aos 15 anos como a fase mais solitária de sua vida. Enquanto seus colegas podiam correr, ela não podia. Também nunca era a escolhida para ser o par romântico de alguém e tinha apenas dois amigos.

Um pouco antes de começar o ensino médio, a jovem conta que sua mãe, seguindo a sugestão de uma professora, comprou um computador para auxiliar a pré-adolescente dentro da sala de aula, já que o número de disciplinas iria aumentar.

O valor do eletrônico nos anos 2000 foi parcelado em 36 vezes, mas, por “ironia do destino”, descreve Manu, um professor de geografia não quis permitir o uso do equipamento durante a aula.

“Minha mãe teve que ir lá, fazer reunião para explicar minha situação, mas mesmo assim ele achava que era muito privilégio para mim. O computador não tinha nem internet, era só para usar o Word e copiar o conteúdo”, diz a geógrafa.

A jovem avalia que a maior parte do corpo docente demonstrava falta de preparo para lidar com estudantes com deficiência. O comportamento de um professor de física, no entanto, é lembrado por ela como um exemplo de conduta.

iente de que Manu tem discalculia (dificuldade de lidar com números), uma das consequências da lesão cerebral, o educador costumava sentar ao lado da jovem toda vez que tinha prova, para auxiliá-la na atividade. “Ele não fazia a prova para mim, mas ele fazia a prova comigo. Primeiro me fazia errar, para depois fazer acontecer, o que fez toda a diferença.”

‘Vivi o céu e o inferno na graduação’

Mais tarde, durante a graduação de geografia, Manu diz ter vivido “o céu e o inferno”. Ela conta que, devido à mobilidade reduzida, precisava do elevador para chegar à sala onde as aulas do curso eram ministradas, no terceiro andar da universidade. O equipamento, contudo, quebrou no segundo dia de aula.

“O elevador ficou 68 dias parado. Tinha eu e mais uma moça com mobilidade reduzida no setor inteiro, mas a turma toda foi prejudicada, porque a sala que passamos a ocupar durante esse período, no auditório, não tinha quadro nem mesa”, diz.

A jovem também afirma que ficou decepcionada com o despreparo de alguns professores. Ela ouviu relatos sobre docentes de outros cursos que, em referência às pessoas com deficiência, diziam “não saber lidar” com “esse tipo de estudante”.

“Eu pensava ‘não é possível que no ensino superior a gente está ouvindo isso, minha mãe escutava isso lá no ensino básico, daí a gente chega no ensino superior e ouve as mesmas histórias'”, lamenta.

Por outro lado, a geógrafa elogia o fato de ter sido acompanhada pelo setor de políticas afirmativas da instituição, desde o vestibular até a diplomação. Manu explica que todas as adaptações avaliativas durante o curso foram construídas de maneira conjunta entre o setor, uma técnica, os professores de geografia e a estudante.

“Hoje, quando volto lá na universidade, escuto de outros professores que a comissão e a minha luta junto com outros estudantes com deficiência fizeram eles repensarem o papel enquanto educadores. Não é que esteja perfeito, mas sem a nossa ação, poderia estar pior, assim como vemos no Brasil inteiro”, avalia.

A geógrafa considera que o diploma é uma conquista coletiva: sua, da família e de outras pessoas com deficiência que lutaram por espaço nas universidades.

Com sonho de ser professora desde a infância, Manu, que é a primeira na família a conquistar um diploma no ensino superior, conta que quer atuar com a formação de educadores. Seu objetivo é se especializar em educação inclusiva e voltar para a universidade -desta vez, como parte do corpo docente.

“Lógico que eu quero fazer uma viagem, ter minha casa, mas o meu sonho pessoal mesmo é eu poder viver para conseguir transformar a sociedade, para que uma pessoa com deficiência não precise passar as coisas que eu passei ao longo da vida”, afirma.

Relatos de mães de crianças e jovens com diferentes tipos de deficiência, como o autismo, sempre foram comuns na caixa de mensagens da geógrafa.

Desde que sua publicação no Twitter viralizou, contudo, ela conta que tem recebido depoimentos de pessoas com paralisia cerebral e seus familiares, situação inédita. “Eu nunca tive muito contato com gente com paralisia cerebral e agora estou tendo. Estou vendo que não estou sozinha no mundo”, diz.

Fonte: https://www.bandab.com.br/litoral/com-paralisia-ela-ouviu-do-medico-que-seria-uma-alface-hoje-e-geografa-formada-pela-ufpr/

 

 

 

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